A vida em regiões secas no Nordeste do Brasil e no norte de Minas Gerais é uma realidade para pelo menos 12 milhões de brasileiros (não há um número oficial e preciso sobre o total de habitantes do semiárido).
Um deles, o sertanejo Gerôncio dos Santos, conta que depende da velha bicicleta para conseguir a água da família. Carregando galões e baldes – em um total de quase cem litros – o agricultor enfrenta sob o sol do sertão os dois quilômetros que separam sua casa da fonte de água no centro do município cearense de Salitre.
"Hoje é a terceira viagem que eu faço com as duas cumbucas e este baldinho. É a água que a gente usa para beber e para cozinhar", disse à BBC Brasil. "A água vem do chafariz que o prefeito mandou fazer tem pouco tempo na cidade. É água boa mesmo – tem bem pouco sal."
No centro da cidade, caminhões-pipa e carroças carregadas com tambores fazem fila para se abastecer na água do poço profundo mais confiável da área. Alguns usam água para suas plantações e criações e outros vendem o precioso líquido para moradores da cidade e da zona rural ao redor.
"O tambor de água a gente vende aqui na rua (na cidade) por R$ 4 e lá no alto (na zona rural) é R$ 5. E assim a gente vai levando a vida", conta o carroceiro Nascimento Moreira, de 17 anos.
A seca mais recente - a mais severa dos últimos 30 anos – destruiu as plantações em Salitre e tornou a busca diária pela água um sacrifício para muitas famílias.
"Aqui costuma chover, na média, 700 milímetros, mas esse ano só choveu 16 milímetros. E aqui no município não temos água encanada: tudo chega de carro-pipa", afirma o prefeito Agenor Ribeiro.
Mas agora, depois de anos lutando contra o impacto das estiagens, tanto o governo como diversas ONGs que atuam na região - reunidas na Articulação do Semiárido (ASA) - concordam que o conceito de "combate à seca" ficou no passado para dar lugar a uma estratégia de desenvolvimento em harmonia com o que o ambiente oferece.
"Todo esse conceito do combate à seca é uma ideia ultrapassada: é como querer combater a neve na Europa. A seca é uma realidade natural com a qual temos que aprender a conviver", diz o coordenador-geral do Centro de Assessoria e a Apoio aos Trabalhadores e Instituições Não-Governamentais Alternativas (Caatinga), Paulo Pedro de Carvalho.
Convivência
O ativista do Caatinga diz que as grandes obras de infraestrutura – como os açudes - feitas principalmente nos anos de 1970 e 1980 pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs) e a introdução de sementes melhor adaptadas a outras condições ambientais são duas das faces mais visíveis da antiga filosofia de "combate" ao problema.
"Essas grandes obras feitas por grandes empresas e com tecnologia vinda de fora apenas reforçavam a indústria da seca. O que temos que fazer é aproveitar ao máximo as características da região e o conhecimento de quem mora nela para encontrar soluções de convivência."
Atualmente, a obra de transposição do rio São Francisco opõe muitos ambientalistas, que consideram o projeto parte da filosofia ultrapassada de "combater a seca", e o governo, que vê o projeto como essencial para fornecer um mínimo de água para milhões de pessoas no sertão.
Para Carvalho, estocar de maneira eficiente comida, sementes e água é a chave para a sobrevivência das famílias em um ambiente seco.
"A comida tem de ser estocada tanto para os seres humanos como para os animais, e é importante que o agricultor tenha sementes adaptadas às condições locais para produzir em ambientes áridos", afirma o pesquisador.
Cisternas
Um exemplo de iniciativa bem-sucedida é o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC), um antigo projeto da Articulação do Semiárido que começou a ser implantado no sertão no início dos anos 2000 e conseguiu decolar quando recebeu apoio institucional do governo federal.
O programa, que já passou das 400 mil cisternas (tanques para coleta e armazenamento de água das chuvas) construídas, indica que medidas relativamente simples e baratas podem ter impactos enormes nas vidas de pessoas e comunidades.
"A gente já sofreu muito aqui em seca no passado, carregando balde de água na cabeça e nos animais. A gente aprende assim o valor da água", diz a agricultora Eunice Matias, do município pernambucano de Ouricuri, que sete anos atrás teve sua cisterna construída no P1MC. "Essa cisterna mudou a vida da gente."
Agora a família de Eunice tem também uma segunda cisterna de maior capacidade, que eles podem usar na produção de alimentos. A água não foi suficiente para salvar o milharal, mas, na seca severa, deu conta da horta e de diversas árvores frutíferas.
Acesso à água
Apesar de ser considerado um sucesso, o programa de cisternas enfrenta uma grande polêmica sobre seu o futuro: o governo começou a distribuir cisternas de plástico para complementar os modelos de alvenaria que vinham sendo construídos.
As ONGs da ASA reclamaram, argumentando que a construção dos tanques com placas de cimento capacita pedreiros locais (que podem também consertar a cisterna se houver problemas), movimenta a economia da comunidade pela compra de material de construção e envolve o cidadão de maneira integral na solução do problema.
"A cisterna de plástico é uma reprodução das velhas soluções vindas de fora, não adaptadas à nossa realidade. Construir uma cisterna na comunidade não é apenas fazer um tanque de água, mas trazer todo um processo de mudança social para a família e para a comunidade", diz o coordenador-geral da ONG cearense Associação Cristã de Base (ACB), Jorge Pinto.
Mas o governo federal diz que as cisternas de plástico são peça chave na estratégia de universalizar o acesso à água no sertão, com a distribuição ou construção de mais 750 mil unidades no ano que vem.
"Reconhecemos o valor das cisternas de placas tanto que estamos ampliando o financiamento para estes projetos, mas precisamos também agregar outras tecnologias para alcançar nossas metas de universalização", diz a secretária de segurança alimentar e nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social, Maya Takagi.
Duas águas
Segundo a secretária, 60 mil cisternas de plástico foram instaladas no ano passado e até agora receberam avaliações "positivas e negativas". Integrantes da ASA dizem ter notícias de cisternas plásticas que teriam se deformado sob o intenso sol do sertão.
"Estamos fazendo avaliações. Temos que testar essas e muitas outras tecnologias sociais que permitam a convivência com o semiárido", diz a secretária.
Agora que um grande número de famílias no semiárido já tem sua primeira cisterna para garantir a água para beber e cozinhar, elas começam a adquirir um segundo reservatório maior. É o princípio de "duas águas": uma para o consumo da família, outra para a produção.
Na casa da família da agricultora Maria das Graças Souza, uma cisterna do tipo "calçadão" foi construída. Trata-se de uma grande laje de cimento com um ralo que transporta a água da chuva para um tanque, protegido do sol e da evaporação.
Com a água, ela mantém a horta produzindo mesmo nas piores secas. "Essa é uma alternativa pra gente viver melhor. Nós fomos capacitados a viver na seca", diz a agricultora.
BBC Brasil
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